A cada seis benefícios concedidos pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) entre janeiro e setembro de 2023, um foi instituído por decisão da Justiça, mostram dados oficiais do governo compilados pela Folha.
Segundo informações do Beps (Boletim Estatístico da Previdência Social), 697,5 mil dos 4,3 milhões de benefícios novos concedidos neste ano decorrem de uma decisão da Justiça, o que representa uma proporção de 16,2%.
O quadro revela um grau de judicialização sem precedentes na Previdência Social, o que preocupa especialistas da área. Além de ser um sintoma de ineficiências no processo administrativo, com impactos negativos sobre a vida dos brasileiros, o excesso de concessões judiciais gera custos extras para os cofres públicos.
Uma vez condenada, a União precisa pagar valores atrasados com correção monetária e incidência de juros, sem contar a remuneração de serviços judiciais como perícia (realizada por um profissional contratado pelo próprio Judiciário).
O fenômeno não é novo, mas passa por uma verdadeira escalada. Em 2001, apenas 1% dos benefícios foram instituídos pela via judicial. Esse percentual chegou a 8% em 2010, 13% em 2020 e segue em trajetória de alta. No ano passado, o grau de judicialização ficou em 14,8%.
Em algumas modalidades, o quadro é ainda mais grave. Na aposentadoria especial, dada ao segurado que trabalha em condições prejudiciais à saúde ou à integridade física de forma habitual e permanente, a Justiça concedeu 94% dos benefícios instituídos em setembro de 2023, enquanto só 6% foram atendidos pelo próprio INSS.
Uma das possíveis explicações para o problema são as dificuldades operacionais do INSS, exacerbadas nos últimos anos com a redução no número de servidores, o crescimento da espera por análise de benefícios e o congestionamento da fila de perícias médicas.
Na avaliação de especialistas e do próprio presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, a demora no atendimento ao segurado o encoraja a buscar a Justiça para acessar o benefício.
Em setembro, a fila acumulava 1,635 milhão de requerimentos administrativos ou de perícia médica, dos quais 45% aguardavam uma resposta por mais de 45 dias. Nas modalidades que dependem da perícia, o tempo médio de espera costuma ser ainda maior.
A falta de capacidade operacional do órgão já foi alvo de alertas do TCU (Tribunal de Contas da União). “Não acredito que o Judiciário seja mais bonzinho. A incapacidade do INSS de atender faz com que tenha muita judicialização”, diz Stefanutto à Folha de S.Paulo.
“Na fila que eu recebi, tem centenas de milhares de aposentadorias por tempo de contribuição com tempo especial. Por que eu não estou fazendo [a análise]? Porque tem mais urgências”, exemplifica.
A concessão de aposentadoria especial depende da análise do pedido pela perícia médica, cujo corpo de servidores está sobrecarregado com a avaliação de benefícios por incapacidade temporária (como auxílio-doença) ou BPC (Benefício de Prestação Continuada) para pessoas com deficiência de baixa renda.
No fim de novembro, Stefanutto editou portaria que flexibiliza os procedimentos para quem trabalha exposto ao ruído, permitindo que servidores da área administrativa façam a análise da documentação que detalha a exposição do trabalhador. Trata-se de uma tentativa de reduzir gargalos, mas ainda longe de resolver o problema estrutural.
Segundo dados da AGU (Advocacia-Geral da União), o INSS recebeu uma média de 1,4 milhão de novas demandas judiciais por ano nos últimos três exercícios. Apenas em 2023, a autarquia obteve êxito ou fez acordo em 64,5% das ações e foi condenada em 35,5% das sentenças de primeiro grau.
Um painel do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) exibe cifras ainda maiores, com 2,56 milhões de novos processos ligados ao direito previdenciário protocolados em juizados especiais ou em primeiro grau em 2023. No ano passado, esse número foi de 3,16 milhões.
Ex-presidente do INSS e ex-secretário de Previdência, Leonardo Rolim avalia que a Justiça acerta em boa parte das decisões quando se trata de rever indeferimentos administrativos. Ele explica que as regras de aposentadoria no Brasil são complexas, e o histórico trabalhista dos segurados também, uma vez que eles passam por diferentes postos e nem sempre conseguem reunir todas as comprovações necessárias para obter o benefício pleiteado.
“Dentro do INSS tem um sistema que analisa a qualidade das decisões dos servidores, desenvolvido em 2019. É uma auditoria por amostragem. [Os resultados mostram que] Quando concede benefício, quase sempre concede corretamente, mas, quando nega, tem um percentual bem elevado de erros, entre 20% e 30%, muito em razão dessa cultura de ‘na dúvida, nega’.”
Nas ações que envolvem perícia médica (mais da metade dos casos), há um problema ligado à gestão. Segundo Rolim, a ausência do perito federal na audiência judicial, seja por falta de pessoal, seja por falta de integração com a AGU, costuma ser determinante para a derrota da União. “Quando o perito do INSS acompanha [a audiência], na maior parte dos casos o perito judicial é convencido”, diz Rolim.
Técnicos que já atuaram na área afirmam, sob condição de reserva, que o INSS vive um “caos administrativo” que atravessa gestões. Enquanto tenta ganhar eficiência para cobrir todas as solicitações feitas pelos segurados em tempo adequado, o órgão precisa incorporar novas decisões judiciais que modificam entendimentos já consolidados e sobrecarregam ainda mais a estrutura de análise dos benefícios.
A mudança de jurisprudência, segundo um dos técnicos, faz com que o INSS passe mais tempo olhando para o passado do que resolvendo os problemas atuais. A revisão da vida toda é citada como o exemplo mais recente. Em dezembro de 2019, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu que os segurados podem solicitar a inclusão de salários de contribuição anteriores a julho de 1994 no cálculo da aposentadoria, invalidando a lei de 1999 que estabeleceu como data de corte o lançamento do Real.
O julgamento dessa revisão ainda precisa ser concluído no STF (Supremo Tribunal Federal), mas, segundo técnicos, parte dos requerimentos de concessão inicial já é feita com base na tese da revisão da vida toda.
A decisão do servidor acaba ficando entre segurar a análise para aguardar o julgamento ou conceder o benefício sob a regra de cálculo atual. Nas duas situações, o risco de o cidadão ingressar com uma ação judicial é elevado.
A coordenadora do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário) Joseane Zanardi também cita a revisão da vida toda como uma possível fonte de maior número de processos contra o INSS. Em sua avaliação, o aumento da judicialização é reflexo dos indeferimentos indevidos, atribuídos por ela ao uso mais intensivo da automação nas análises. “Infelizmente, a Justiça também não vai resolver na velocidade que o segurado precisa”, diz.
Rolim levanta a hipótese de uma mudança feita na reforma da Previdência ter acelerado as decisões judiciais. Antes, qualquer ação envolvendo benefícios poderia ser protocolada na Justiça Estadual, apesar de o INSS ser um órgão federal, pela chamada competência delegada.
Na reforma, o alcance dessa competência foi bastante reduzido, levando mais processos para a Justiça Federal, onde a tramitação costuma ser mais rápida. Se for esse o caso, o ex-presidente do INSS destaca que as condenações podem subir num primeiro momento, mas o governo terá um custo menor com juros e multas.
Fonte: Idiana Tomazelli, Brasília, DF (Folhapress)